sexta-feira, 8 de junho de 2007

o riso e a raiz

Aquele dia de quem lhe roeu a face, naquele dia em que eu lhe roí a face. Para frente, para trás e sempre pára no meio. Menor, maior, mas sempre um símbolo de igual ou diferente. A dimensão dos povos e sempre a maioria: para sempre a igualdade que avança macaqueando a impressão do que nós éramos antes.

Tudo que eu poderia ser foi absorvido pelo impacto deste momento, pelo impacto de um ponto comprimido numa longínqua reta. Eu sou este território onde me finco, sou seco e abstraído. É como quem não diz nada para frente: permanece sempre igual em um diálogo desabitado.



É quando eu percebo pela primeira vez que este território que me povoa é robusto e árido: faz de mim a mínima flexão que é a vírgula, reinscreve o que era antes multiplicidade em forma de Pena. Faz dos meus substantivos compostos corpos conjugados por sujeitos simples.

Eu preciso do ar e respiro-me pela falta de espaço. Eu aspiro o vento e arejo meus pulmões com meu sopro tardio. Naquela dimensão perdida que se apelidou de subjetividade, e do que vinha a ser “isto”, e do que eu não fui questionado se era.
Já tinha esquecido do desejo de partir, quando sou eu quem recolhe minha própria raiz e avanço com minha boca sobre o rosto.



Eu quero tentar esquecer o que foram por mim. Rost, rost, rost, rostitude: a imagem de quem me enfrenta enquanto tento novamente elucidar o que eu era no rosto de quem ataquei.

Quando eu tinha dentes que me roíam o pulsar das carnes não era acostumado a roer o rosto dos outros: foi então que me entregaram ossos para substituir os dentes, chamávamo-los de ferramentas.

O que era amizade e companheirismo na verdade eram propósitos. No escuro foi o tempo de afirmar que era eu mesmo quem roia os pulsos, tinha conhecimento disto ao investigar-me profundamente. Era no tempo em que meus dentes não tinham se acostumado a serem o dos outros.

Foi naquela vez que o rosto me ofereceu gengivas que percebi: há muito não tinha dentes que me servissem. E toda minha inflexão foi um modo de mirar aquele rosto que já não era tão dócil.

Tudo naquele quarto escuro, em toda fração que ali se encontrava, tudo ali era intenso, denso e habitado. Se eu fui acostumado a lidar com rostos plastificados, ali, naquele quarto escuro, era tempo suficiente que a sugestão me atacasse.

E eu já rosnava como bicho quando aquele rosto confiou-me ser pura luminosidade e imanência. Era a vez que eu lhe cobrisse a face com coisas vivas feito os dentes.
Ainda me desafiou rogando por culpas, enquanto eu lhe rasgava a carne. Já nem sentia o gosto de sangue entre os dentes quando roí a minha própria mão ao imaginar que a minha mão fazia parte daquele rosto.

Demorou até partir pela porta, até ser parido por aquela porta. O tempo se expandiu parecendo que eu teria de roer novamente e novamente as mesmas raízes. A porta estava aberta para mim e eu avancei.



Mesmo depois de atacá-la, a face ainda é-me um rosto, mesmo que se constituísse por fragmentos embaralhados. A temperatura dos olhos, o gosto do tato, a cacofonia do nariz, a dimensão do ouvido e o perfume de uma língua se abanando. Todos, tudo, ainda avançam em meu tronco como memória, nestes dias em que meus galhos balançam feito guizos no escuro.

Foi só depois que abandonei a sua figura de controle que percebi que dentro de mim não mais habitava a gargalhada. Avançava para um novo território, mas o que é um riso tímido se não posso gargalhar?

Perdi os dois, e ainda o chôro que não vem em socorro, fiz por merecer, por tê-los apelidado de desengonçados. Levaram-me os três em troca de nostalgia e aqui anuncio, para quem quiser ouvir, que não há maior nostalgia do que o futuro.



Ofegava solto desejando-me rir na vastidão. Só buscando o riso que percebi que não era eu quem roia as raízes. Bem mais profundo é ser o próprio machucar que não deseja mais ser habitado.

Quando eu me cortava, os pulsos diziam-me pare com isso e eu ouvia e revirava os olhos. E o que eu ganhei em troco disso? pernas bambas e um joelho fraco.
Lembro-me que enquanto me feria profundamente com os dentes, um pensamento me escapava: melhor assim do que ferir a maior dimensão que é a própria pele.

Era melhor entupir-me as veias fazendo zumbir os sentidos. Por vezes, acordava tonto. Roer-me os pulsos, depois de um corte sempre tão extenso, foi o mesmo que sufocar-me no meio da fumaça. Enquanto uma fumaça vinha habitar a profundidade do corte eu via solto, até que esqueci de mim.

Eu era riso até pouco tempo, posso ainda sentir-lhe na face quando toco meu rosto sem máscaras de conveniência. A profundidade deste meu rosto há muito tempo engoliu a gargalhada à seco, quase já não a lembro que tive gargalhada.

Desejo-me sonhar para encontrar o riso, assim também devo encontrar, pela primeira vez, um chôro melancólico. No meu sonho a vida ia ser potente num infinito descampado, se expandindo para frente, mas também para trás e numa sem extensão.

O rosto que ataquei e roí não era o meu, o ventre que me pariu foi este quarto sombrio e tenebroso. Nasci novamente. Sinto sede da fome, quero o vomitar deste último verme que guardei dentro de mim, saboroso e nutrido como eu sempre o nutri me servirá como o desjejum da partida. Eu quero o gosto da carne e de todas as suas vicissitudes, se parto com este delírio que me deixem ir.

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