quinta-feira, 15 de janeiro de 2009
Um velho.
Diga “33”.
O estetoscópio apalpando as costas, primeiro as extremidades onde ficavam os primeiros lóbulos dos pulmões, passando pelo meio até chegar onde nem se imaginava existir mais qualquer um dos pulmões. Aquele tom gélido da sala, a som ecoando pelas paredes de forma sepulcral, o cheiro de remédios tomando tudo ao redor, inclusive a ele. O garoto que lhe atendia certamente era mais novo do que seu filho mais velho e lá estava ele, parado.
Agora respire fundo.
De tempos em tempos repetia o exame com o lembrete dos familiares que lhe procuravam pelo telefone. Está lembrado? Como não esquecer? Sim, eu sei que devem ser feitos de três em três meses para que se possa avaliar a extensão do dano causado e que o médico ainda afirmou que pode ainda haver algum êmbolo que descole e obstrua a passagem do sangue para os alvéolos. A família são os nervos. Olhe, estamos fazendo isto porque gostamos de você, sei que o senhor acha que é irritante este vai-e-vem na idade que você chegou, mas com o plano de saúde que pagamos não há nada de melhor a fazer. Melhor do que uma fila de hospital público e, no final, cuidar da saúde faz bem para si.
Um leve tapinha nas costas e “pode pôr a camisa”.
Segurava rodando uma daquelas pedras que funcionavam como peso e adereço na mesa do pneumologista enquanto moía os lábios contra a gengiva e os dentes. A marmota poderia parecer nojenta para a maioria desses jovens, sabia disso porque, de tempos em tempos, o médico na frente não conseguia deixar escapar a olhadela, voltando logo o olhar para baixo e para alguma instrução, mas não dava para evitar a gastura do implante de dentes artificiais.
Fazia uma abordagem rápida sobre o números dos leucócitos, plaquetas e hemácias, que afinal seriam melhor abordados pelo outro médico junto às taxas de lipídios no sangue, passava imediatamente para a ultrasonografia, apontando com a caneta as manchas onde cada órgão estava localizado, emitia opinião sobre a coloração de cada coisa e, por fim, dizia para que marcasse logo com a secretária lá de fora o retorno, evitando assim os conflitos com as consultas de final de ano. Entregava-lhe o receituário médico enquanto o velho, brincando com os lábios, voltava os olhos duros que passaram este tempo todo observando o vazio.
Chegando em casa, quase pontualmente às seis da noite, ia para o banho e começava a queixar-se, de si para si, da água fria. Que mal deveria fazer aos pulmões, bufava. Enxugava-se com a toalha felpuda os cabelos que saíam mal arrumados do banheiro e se vestia, sem olhar no espelho o peito caído e rajado com vários fios brancos, pondo um dos calções leves que ganhara dos filhos no Natal passado e camiseta regata. Por vezes, fazia o bigodinho na altura do lábio superior raspando todo o resto, nas últimas vezes é que tinha deixado esta mania.
Punha a janta comprada na padaria, que nada mais era do que sopa reaquecida no fogão e torradas, e cobria apenas um quarto da mesa. Ligava o rádio a tempo ainda de ouvir a Hora do Brasil.
O mais velho é que lhe ligava às oito da noite, já premeditando que o programa do rádio teria acabado e que ele estaria indeciso entre lavar as louças ou dormir e deixar as louças para a empregada que vinha de manhã.
Que há de novo, pai, tudo em cima? Na mesma, observando em semi-consciência as caixas de remédios emparelhadas no armário velho que ficava no canto esquerdo da sala. Foi ver seus amigos, a partida de futebol que o time de coração perdera por causa do juiz ladrão, comentários amenos e autômatos sobre o correr da vida dos netos e, por fim, o papo do médico que sempre tardava, embora não desaparecesse.
Algum remédio novo? Algumas vitaminas, mas penso em não tomar. Que é isso, deixou de gostar de si. Olha que é importante vitaminas, não sabe que as doenças vêem pela falta delas? Julgava o pai um estúpido em matéria de Ciências. Olha, estou cansado de comprimidos, tenho aqui caixas demais para meu armário, noutro dia me engasguei com uma pílula e quase parei de tomá-las em definitivo. Tomou com um copo d´água. Ora, tomei foi com praticamente dois.
É verdade que as brigas vinham sempre, e quase por nenhum motivo óbvio, a razão quase sempre era a velhice, e não era possível vencê-la como tampouco fazer com que os outros a aceitassem de forma natural. Queria é morrer de uma vez, diacho. Depois vinha a aceitação dos dois porque, afinal, ele era velho e cabia a ele não fornecer um estorvo maior do que os filhos pudessem suportar. Qualquer coisa ligue, vou falar com a ex-esposa para levar os netos no domingo. Terminava sempre as obrigações de filho fugindo para a alegria.
O velho tinha dor nas costas. Fora o solavanco que recebera na bacia no caso em que o taxista avançou o cruzamento que mais parecia uma lombada, só pudera ser por este motivo. Deixara, como de costume, as louças empilhadas na pia, abrira a torneira apenas para emergi-las na água, beijara a foto emoldurada da esposa dizendo entrelábios, “minha velha, que saudade boa eu sinto de você” e fora ver televisão.
Razão para isso tinha, o telefonema, o médico, o taxista. Não pensava nesta ordem e tão pouco sabia que pensava, mas bocejava dizendo isto alto demais, e por isso ficava. Como não era de ferro, dera um gole rápido num dos vinhos que ganhara na Páscoa. A bebida naquele instante até lembrava a rebeldia de, quando menino, esperar que os adultos se levantassem da mesa para tomar-lhe os restos. Rira lembrando do primo que, anos após os minutos da infância, costumava acompanhá-lo nas fanfarras.
Primo, primo, dissera sorrindo alegremente, morreu antes só para me deixar rindo da piada que foi tua vida? E ria três risinhos consecutivos.
O primo fora tomar banho e levara uma queda no banheiro. Morreu sozinho, antes mesmo que a esposa dele chegasse da feira.
Ele disse que ia tomar um demorado para me receber cheiroso, disse ela no velório. E ria sem se importar com a tristeza enlutada da viúva.
De uns tempos para cá muito tinha perdido a graça. Primeiro foram os filhos que saíram de casa, depois os amigos íntimos morriam longe das ruas onde nasceram, a esposa, o filho mais novo num acidente de carro, até chegar ao primo. Mas a comédia do primo era hilária. Sempre fora abobalhado para quedas. O espetáculo de mortes que passavam noite à noite na tevê não espantava mais.
A gente vive é para morrer mesmo, e falava assim preenchido com amargura nos lábios.
Levantou-se para se permitir “apenas mais um pouco de vinho”. Olhando para a pia sentiu uma dor que começava no ombro e irradiava por todo o braço. Segurou na porta da geladeira largando o copo no chão e pondo a outra ali mesmo onde começava a dor.
Tombou, morreu no dia mesmo em que foi ao pneumologista. Ainda conseguiu dar alguns passos longos e forçosos, que foram vistos no outro dia pela arqueadura das pernas, e agarrou com uma mão apenas a foto emoldurada da esposa falecida. Não foi o pulmão, não foram os remédios, não foi nem mesmo culpa do taxista. Semanas depois, a filha discutindo as partes da separação com o marido encontrou o cardiologista no restaurante e ele tentara convencer entre ombros que todos os exames haviam demonstrado uma melhora substancial da situação cardíaca e circulatória do pai.
Ela ficou desconsolada com a resposta, mesmo o médico sendo amigo particular da família que naquela mesa se partia: “quando se está velho também se morre subitamente”.
No outro dia em que o velho morreu, a doméstica estranhou o som da televisão ligada ao entrar, viu um pouco distante a porta da geladeira aberta e, só então, percebeu o patrão deitado sobre o piso com a foto presa entre dedos. Havia comentado anos atrás com alguém que era muito provável um dia encontrar aquele senhor recluso morto no chão da sala, só não esperava que fosse logo após uma noite em que teve vários orgasmos.
Tampou a boca, deu a volta pelo lado do cadáver, pensou alguma bobagem sobre a polícia e utilizou o telefone da casa para ligar para mãe dela que a tranqüilizou. Só então ligou para os telefones dos filhos que estavam na agenda dentro da gaveta, entre choros ligou para o mais velho, que lhe era mais próximo, depois para a moça advogada e para o mais novo que estava desempregado, mas que viajava pelo Sul. Só neste último que a voz ficou mais contida.
No outro dia da morte do velho, os filhos não foram trabalhar, algumas crianças não foram para a sala de aula e um bebê berrou muito porque só foi amamentado por volta das onze horas. Todo o resto estava tranqüilo como a discreta cerimônia do velório, o mundo não foi abalado minimamente.
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