segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Sofrimento


Dorme a noite incólome por detrás do riso. Ressentido e descrente de tudo que enxergo, se é que enxergo, se é que me pertence, caminho adiante até os calcanhares das noites de vales escuros; fortemente sensibilizado com o som e o sono de minha própria voz. Estou sozinho com a escuridão que se preenche envolta num cobertor de frio. Migro, inerte de tanta dor, para dentro deste ar pesado que se encontra no vácuo, sem haver esquiva. - A noite, esta cega pusilâmine, se preenche e se esvazia por si só, todos os dias. Que há mais a frente?

Surge, mais uma vez, o velho de rugas que reconheço de pronto. Sou eu ali ao lado. Será que pretendo mesmo ser? Já me conheço e nunca me esqueço. Sinto, apenas, a compaixão do monge cego na caverna e ofereço o pescoço como reconpensa; sem o regurgirtar solapos do medo. Tudo me preenche e tudo me esvazia: não há canais para mais adiante ou num compassado tempo.

Pertenço à morte, e aquela damizela, que oferece os orifícios aos desavizados, de trapos limpos e muito antes tocados, me pertence. Ela bebe, num crânio vazado por foramens, ao meu sofrimento. Quem quiser se envaidecer com este lirismo decotado, que se entregue aos beijos lacivos de uma serpente e silencie meus gritos mudos;certamente há de encontrá-los. Aos tolos, digo apenas que não será qualquer vale sombrio que trará convulsões ao silêncio.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

(Holiday Inn) Segurança



Qualquer calçada é vazia e escura à noite. Varia apenas quando alguns condomínios decidem por um sensor de movimento que ilumina o trajeto assim que um transeunte, feito eu agora, decide irromper o silêncio com passos e movimento. A luz é segurança, a escuridão incerteza permeada de medo. No vai e vem de empregados e empresários, os únicos ruídos conhecidos são os dos carros que tornam o trajeto um pouco mais familiar; embora sempre receoso de qualquer atropelamento.


A calçada de frente para qualquer prédio próximo ao meu é construído por pequenas pedras que medem no máximo uma ou duas polegadas de largura e uma de altura. As guaritas altas são apenas acessíveis por botões ou vozes que sinalizam a chegada de alguém. Ouvem-se estalos quando um dos dois portões abre. O primeiro é segurança para quem vem, o segundo segurança para quem está.


Quando se quer, enfim, ficar mais próximo ao local onde dezenas de pessoas comuns moram, cidadãos confiáveis que pagam taxas ao administrador do condomínio para poder definir quem desejam entrar, é preciso ser identificado ou identificável. Até eu mesmo fico desconfiado que este é mesmo o meu prédio, que posso entrar. Os porteiros são espécies de colegas que reconhecem nossas vozes quando sinalizamos um assobio ou soltamos grito de uma onomatopéia. Raramente chamamo-los pelos nomes, embora, pelo acesso a documentos e pelo trato diário, sabem-nos todos.


Até eu mesmo, figura de aparente 23 anos, me sinto observado por um deles quando cruzo a frente de qualquer prédio. Obviamente, o homem que deveria fiscalizar a entrada e saída de pessoas não precisa se preocupar em me ver. Há milhares de alarmes, censores, câmeras e cercas elétricas que visam funcionar melhor do que qualquer olhar treinado humano neste ponto. O ser que abre ou fecha portões está quase sempre assistindo televisão na guarita, conversando com moradores ou dormindo, função desempenhada por estes e odiada pelos moradores quando chegam mais tarde.


O espaço físico e interior acastelado tornou-se sinônimo segurança pela tecnologia das empresas que cobram determinado valor pelo serviço que prestam. Os contratantes ficam satisfeitos, os contratados abonados. Só se for necessário, aí sim um ser humano posicionado em potente ação, agora armado, autorizado e dirigindo um veículo vai averiguar a “ocorrência”. Interessante que, nos últimos anos, estamos tão cientes das gírias policias quanto nos interessamos por cultura de massa. Consumimos em massa, embora busquemos sempre viver sem o contato imediato dela.


No espaço de dentro ainda sou fiscalizado, no trajeto até o elevador, e no elevador, sei da possibilidade de alguém acessar minha imagem enquanto espero fim dos meus passos chegarem. Exceto em cada andar, onde a quantidade de imagens se tornaria exaustiva e desnecessária, e dentro de meu apartamento, onde a lei e o interesse garantem privacidade, poderei desenvolver o mínimo de tranqüilidade e intimidade plena, o olho de uma câmera não vai me observar. Sempre me garantido pelas cortinas a barrar possíveis olhares curiosos vindo de qualquer direção pelas janelas.


Eu tiro a roupa, a camisa e o sapato logo que entro. Quero estar nu de possibilidades que no contar dos dias parecerão sempre possíveis. Um assalto, um roubo, um atropelamento. Quero estar nu do meu medo, nu das minhas obrigações, do meu censo de justiça e correção. Quero estar ausente do contato que sempre evito antevendo o provável, quero me limpar do sujo que é a rua e tornar-me limpo como a casa. Seguro, nu, limpo: por pelo menos oito horas.

sábado, 21 de março de 2009

A estranha farsa do Amor Perfeito


Estranho e necessário que passado algum tempo verdades surgem retornando, uma a uma, à frente, a olhos vistos. Quem imaginaria que depois de quase oito anos fosse necessário falar sobre o passado?! Reviver antigos sentimentos; reavivar adormecidas emoções, quando o mais fácil, e, sem dúvida, o mais natural, é repousar assuntos antigos na gaveta da escrivaninha.

Torná-las, então, fábulas, como num passado já muito antigo; entretê-las, como temos feito com outras pessoas, dentro dos sonhos; desperdiçá-las, enquanto história constituinte no momento em que percebemos que, sim, nada de físico aconteceu.

Quem desejamos trazer à tona que aqui não está? Nós mesmos ou os outros? Que trajeto, obscurecidos por tantas outras razões, sentimentos e sensações que nos prenderam já diante do outro, retornaram? Qual a parede semitransparente que, uma vez lá, permite serem reveladas fatos e desejos como num confessionário?

A internet? A internet é muito pouco, daqui a algum tempo, talvez ainda quando nossos corpos se mantiverem quentes, terá passado como passou a invenção do rádio, do telefone, da lâmpada,...

Estamos falando tudo ou ainda sentimos vergonha?! Mas vergonha de quê se a parede e o anonimato, de tão poucos elos ligando trajetos de vida tão diferentes, inclusive por cidades, nos detêm como entre o sono e a vigília?

Ah, se um acelerador potente daqueles dos primeiros filmes sobre a Fórmula 1, com seus automóveis circulando velozmente em Mônaco, fosse possível para a relações humanas! O que estamos esperando? Nos encontrar para passarmos de flertes em frases descompromissadas, do tipo “já gostei de você”, para finalmente encararmos a realidade de um e outro e pensarmos que saberemos o que queremos? Ou nos entreter em círculos como fizemos desde o primeiro momento?

Que é da paixão que adormece e acorda com cabelos desgrenhados, sujeira nos olhos e vista embaçada, tateando as paredes? É o amor que se procura encontrar como num final de conto de fadas?

“Veja só, o rapaz é tão gentil com aquela gigante de voz introvertida e gestos da mão curtas...”, suspiram algumas figuras. “Aquele é um homem de verdade”, cochicham as latrinas que completam a orquestra de, provavelmente, um seriado da Disney. Com quais bichos atuaremos quando nos afetos antigos possuímos bocas, mas não vozes para dublarmos nós-figurados?

O que é a entrega na paixão a qual não realizaremos nunca, para talvez deixarmos vivas as fábulas? Querer te fazer gestos e gentilezas sem jamais completar o movimento; tapar gentilmente teus olhos, como num filme hollywoodiano, mas sem nunca realizar a cena final do beijo em que sobem os letreiros.

O que é esta farsa que chamamos intimamente de amor verdadeiro? Quem eu vou levar, já em horário tarde e cansada, de volta para casa apenas para poder suspirar sozinho depois, em desalento?

Tua mãe, então, montará qualquer coisa como um lanche, como se fôssemos apenas dois amigos do colegial, e eu encenarei alguma frase como “Não precisava!”.

A atmosfera poderia ser então redesenhada como naquele banco da universidade federal onde há flores adornando o encontro dos amantes, embora aqui não haja nada lascivo entre nós. Apenas olho e tenho a perfeita noção da beleza do teu corpo, me espanto com aquilo tudo estar na minha frente, ali, embora não faça nada para “não estragar”.

Desculpo de mim para mim dizendo que tens namorado, você se desculpa de si para si dizendo que tem namorado; e o que é mais importante a ser dito é que esse desejo não se realiza. Onde estará a carne entre esses dois personagens feitos de papel? O que é vivo se realiza vivendo.

Ai, que eu tenho tanta pressa de morrer! Imagino para mim um enorme grupo de quase-virgens chorando à beira do caixão, elogiando a beleza que não creio e os lamentos em todas entonações e sons. Peço, e repito, que não quero carpideiras e caixões. Joguem meu corpo numa vala funda!

Por acaso, não aparecerá alguém para me derrubar com um chute do caixão?! Parecerei eternamente este tipo de galã cigano? Que eu tenha um bom amigo nesta hora, que ele chute violentamente o caixão e eu sorria admirado, mesmo morto, porque o que resiste vivo é a ação.

Você me pede para voltar. Pensando em você, como também em tudo que acho belo e desejável em ti, penso em voltar imediatamente mesmo sem saber como.

Isto não é amor ou paixão, isso é flerte disfarçado de saudade! Nem eu e nem você, por mais que achemos bonito reviver esta farsa do amor perfeito, poderemos exigir que um represente o pedaço do outro neste espetáculo metafísico. Além de tudo, as fábulas, como as farsas, são sempre muito belas e felizes; embora este texto possa lhe parecer bonito, a realidade é que são elas.