domingo, 8 de março de 2009

A escuta e a fala (autoretrato)


Acabo de receber uma ligação. É o patrão. Toda vez que ele me liga não vou negar que começo a entrar numa sensação tensa dentro de mim. Será que ele irá apresentar uma bronca? O patrão pode ser qualquer um, mas neste caso ele tem nome certo: O. L.

Tenho levado, na medida do possível, uma vida confortável. Não consegui um emprego fixo, mas cá e acolá consigo um freelance (trabalho por demanda), que me salva e eu acabo “dando um graças à Deus”. O trabalho, no entanto, para mim, continua o mesmo. Trabalho é trabalho, diversão é diversão. Como água e vinho, como patrão e empregado. No final, esta distinção se mantêm como a escuta e a fala.

Estou mais acostumado com marretadas do que com afagos, dos afagos mesmo até desconfio. Os seres humanos, e não entendo o porquê, costumam misturar afeto e trabalho. Afeto para mim é algo absolutamente individual, sensorial. E eu sei trocar afeto, mas a dimensão do afeto no Outro é algo desconcebido por mim. O que é ter saudades de mim se, segundo me consta, este mundo viveria tranqüilamente sem a minha presença?

Tenho tão pouco, e sempre o pouco que tive me foi tomado como de brusco, ao menos na medida em que concebo. Sei aceitar como de pronto o afeto de quem já se tornou muito próximo de mim, mas até lá há um longo percurso à frente – ou curto a depender das circunstâncias. Como, por exemplo, há de haverem laços sem o sacrifício de algo ou sem, pelo menos, se desvincularem os papéis. Amizade, afeto sobretudo, para mim, é nudez, despossuição, entrega.

Não há laços onde as posições já estão dadas. Recife talvez tenha me embrutecido, talvez ter sentido ano após ano que as amizades não aconteciam do modo como desejamos me fizeram dar um passo atrás, reavaliar. – O que há nessa docilidade que se declara de pronto concebida? “Trabalhamos juntos, precisamos trocar as dificuldades para podermos nos ajudar: as dificuldades são nossas”. As dificuldade são minhas, sou eu que tenho que rompê-las, ou então desistir.

Dificuldade quer dizer necessidade de empenho, o empenho para mim aparecerá atrás das nuvens sob a montanha como trajeto a ser percorrido individualmente. Talvez seja por isso que me dê bem com as mulheres: carrego fardos sozinho como a menstruação. Embora possa causar determinado peso em certo número de pessoas não é o que me agrada, se sinto ou tenho algo no corpo, escondo. – E escondo mesmo, se duvidar ninguém descobre!

Um caramujo, compararam muito acertadamente por aí. Não ouso deixar minhas tralhas de pensamento por aí. Evito importunar os Outros com minhas desgraças pessoais. Quando alguém toca nas chagas até sou imediatamente evasivo, como quem expõe as feridas às moscas. Talvez o claustro da academia, o mofo em estudos silenciosos num bureau, sejam a única saída. Talvez o estereótipo do jornalista que pretende escrever todas as matérias sozinho seja uma sina determinada para mim mesmo.

Tímido, retraído. Tímido apenas na medida em que a timidez me protege, quando há de ser necessário uma evasão ofensiva prontamente o sou. O círculo é fechado sobre mim, embora enxergue ele cada vez mais em choque com os outros. Dentro do meu próprio espaço do meu próprio ciclo, pode haver vácuo, mas há também enorme preenchimento.

18, um ou zero, 81. Eu só tenho entendido até aqui os excessos: mais ou menos, acima ou abaixo.