quarta-feira, 6 de junho de 2007

Meu lado debaixo da língua

- Machuquei o lado debaixo de minha língua.

Faz tanto tempo que escrevo, que digo que escrevo, que já não considero o que escrevo, já não há tanto segredo dito isto tudo. Há tantos outros que escrevem, que dizem que escrevem, que não consideram o que escrevem e não fazem este tipo de perguntas. A síndrome é antiga, mas ao que parece, somente na passada adolescência dei-me conta que eu fui uma criança escrevendo para os outros.

Como na quarta-série. Não sei o que há nas crianças, ou mesmo na criança que guarda estas lembranças dentro de mim, mas chego ao ponto de afirmar nesta frase mais longa que as crianças lembram de séries como quem lembram dos anos. A única frase constante que uma criança emite é eu faço tal série. É bem claro que muda de série, mas a criança muda de tamanho, cresce para os lados querendo estabelecer um elo entre ela e as pessoas que ofertam proteção, presentes, sentido. Cresce para cima também, mas na minha baixeza insisti em desejar o dia em que deitaria no banco traseiro do carro e meu corpo ocuparia todo o comprimento, um ato sem prestígio.

Primeiro vieram as cartas, notadamente as de amor para quem quiser gozar como eu. Franzino, o gordo albino que eu era se apaixonou pela mesma menina que tantos outros meninos se apaixonavam ao mesmo tempo, na mesma série. A diferença, para mim, é que eu tinha as cartas, eu entregava poesias que iam me abandonar e que nunca mais iriam me olhar depois da primeira olhadela.

Ela tinha sotaque do Sul. Era morena, tinha castanhos-olhos muito vivos, era magra como não poderia deixar de ser e não tinha nenhum sinal de sensualidade. Ela sentia medo e insegurança ao entrar num colégio desconhecido com numerosos sem-rostos?! Talvez, no início daquela série quando estava pela primeira vez ali no meio da sala. Uma menina do Sul que muda na quarta-série, simultaneamente, de colégio e de Estado sempre guarda um pouco disso para os outros. Depois ficou popular e namorá-la ganhou um som com ares de prestígio.

Foi para ela quem dediquei as primeiras linhas que nunca voltaram. Punha em sua bolsa os papéis-dobrados durante o recreio para dizer o que ela queria escutar e poder lhe assinar: anônimo. Depois acompanhava ela tirar o papel-dobrado e desviava o rosto tentando acompanhar, quase que por frames, os momentos que ela e suas amigas riam e se animavam com seus bilhetinhos, anunciatórios de amor.

O que eu escrevia eu não sei e é óbvio que nunca aconteceu nada entre nós dois. Se eu dissesse que algo tinha acontecido entre nós, o meu leitor não atingiria o clímax que acabei de planejar. Eu sei que também ele é um escritor que escreve, que diz que escreve, que não considera o que escreve, este é o epílogo mais fidedigno de nós: leitores-escritores-privados.

Para quem você-escreve, para quem você-lê? Talvez hoje você descubra pela primeira vez que não escreve para si mesmo e nem para os outros e descubra que é preciso partir por um outro porto. Vou lhe poupar de minhas palavras nesta outra parte.

- Tenho fungos nas mãos, minhas digitais estão azuis por toda parte.

Um comentário:

kleine kaugummi disse...

Ensaiei-ensaiei o que dizer aqui.

O que dizer nesse espaço onde cabem apenas as tuas letras, onde elas se enfileram e tornam-se descrições em perfeitas formas?

Hei de prescrever-te pomada pra ferida em língua e lenço de papel umedecido, pra retirares a tinta. É só o que me cabe, diante da imensidão do que és.

Beijoca.
=*