sábado, 23 de junho de 2007

Quartos Sonhos



Assim que alcançou o teto do Lago, a primeira bolha de teu último suspiro se prolongou sem que mesmo aquela fina membrana que a envolvia percebesse que atingira o limite da aguda superfície.

Foi como se o ar tivesse mais uma vez se tornado líquido entre a Realidade e o Sonho. Para quem não me entende, explico que não é preciso esforço de lógica: do mesmo modo que as criaturas que não enxergam muito bem beijam o oxigênio sem ter por isso que ele existe, eu digo que é preciso de uma nova lógica para construir um novo mundo.


Às vezes, quando acontece de uma bolha subir desprevenidamente para além d´água, um frio cortante sopra dispersando o sono das bolhas. Mas apenas nesta simples vez, e quanto a esta única bolha que em potência sou eu, o Frio se distraiu ao encontrar uma raposa no seu vidro, e foi assim que um vento não pôde soprar ao meu encalço.

Você pode estar se perguntando quem afinal é quem fala, saiba de uma vez por todas que você já ouviu minha voz uma centena de vezes ecoando por estas páginas. Estou aqui não para falar sobre mim, mas para informar que por um pequeno milagre tudo pôde operar numa dança minimalista que começa a ser ensaiada agora, mas não pela primeira vez. Será que você conseguirá acreditar em tamanha fragilidade?


No início tudo era vastidão, imensa visão de leite com dois astros perseguindo e fugindo ao redor da gigantesca plataforma de onde surgiria o Mundo. Um dos astros era preenchido de calor e era luminescente, o outro era frio e pálido.

Pois foi este último que surgiu primeiro e era Covarde, fugia do calor com medo de ser consumido, e sempre que se distanciava mais da luz que não era sua, iluminava mais.

O outro, o Corajoso, era mais novo: nasceu expandindo os braços, e pela primeira vez fervia o leite. Pois foi assim que ele fez o leite soltar bolhas feito eu e é assim que, de alguma forma, me sinto dependente daquele momento.


Não havia neste tempo o Frio que soprava ante o Calor porque o leite ainda não sentia necessidade de equilíbrio. O Calor só veio se desprender da Coragem quando este correu atrás da Covardia, e a Covardia, por sua vez, só pôs o Frio a correr atrás da Coragem depois de sentir coisa simples feito o medo.

Foi com o correr destes dois Astros que se começou a contar o Tempo e, pela primeira vez, algo enfim haveria de ser sido criado. Não que a Coragem e a Covardia tenham percebido isto: os dois continuam correndo um atrás do outro sem se dispor a parar o Tempo, para apreciar a obra que nasceu boiando sobre o leite.

Vocês, que vivem nos Continentes, que um dia foram tão somente leite, bem sabem que o que nasceu foi o queijo, a manteiga e a coalhada, mas nem todos acreditam que haja Coragem e Covardia deste jeito que conto. Para aqueles que bem entendem, basta observar firmemente o fogo e o gelo e tudo ficará claro.


Contam também que a partir de bolhas que espocaram antes de virar nuvens surgiram os pássaros que caminham sempre para o Sul. Eles não são todos do mesmo tipo, bem sei que o nome pássaro pode assim sugerir, mas cada um, e de sua própria maneira, foi ligado a um tipo de arbusto presente nas nuvens para que não ficasse vagando completamente.

Por isso mesmo, os pássaros visitam os Continentes, mas a eles não pertencem. Carregam galhos e caules para formarem ninhos e caminham sempre para o Sul.
Alguns destes gravetos caíram sobre o Continente, e foi atingindo o leite que formaram o que conhecemos por Vegetais. Foi assim que drenaram todo o leite do centro.

Os Animais, muito pelo contrário, nasceram das últimas partículas de leite que se soltaram sobre a terra. E foi porque não conheceram o leite que souberam dominar a terra muito bem.


Contaram-me que a primeira bolha feita do primeiro Sonho, que nasceu da dor de ser tocado pelos raios triunfantes da Coragem, fez nascer a nuvem de onde parti. Ela ainda tem nome, mas como todo primeiro nome podia-se chamá-la de Solidão: dela só nasceram as fadas que se transformam em bichos e um triste fauno.

Só mais tarde um pássaro foi plantar um arbusto no centro da nuvem e desta se expandiu todos os Sonhos que espantam o vazio das coisas.


Partimos ali daquele quarto atingindo a nuvem de onde vim. Nasci bolha pelo último suspiro de quem te abandonava no Sonho, mas as cores e as cordas, onde você se segura dentro desta câmara, são tua própria imaginação que cria. Segue em frente a tua realidade para descobrir que a vida em Sonho resiste à dois.

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